Sobre o que sonham monóceros?
Porque monóceros sonham que nós existimos
— seres pequeninos dormindo sobre uma pedra sonhando
que nós existimos —,
então, nós existimos.
Nós e pedras,
desgarrados dos cursos das águas,
às margens de rios.
Nós e pedras,
e também estrelas e galáxias.
Nós e pedras,
reduzidos às experiências universais de eras;
[mesmo nos séculos em que não aprendemos nada,
em que erramos em tudo,
em que nunca estivemos tão tristes,
e também naqueles em que estivemos todos mortos e bem.]
Mas se monóceros não sonhassem que nós existimos,
se nós não existíssemos,
seria preciso que fôssemos inventados?
Do filho malsucedido
há uma tristeza que não sai de mim
mesmo agora
segurando meu filho pela primeira vez
(foram os livros que me estragaram, reconheço)
um dia terei que dizer a essa criatura desagradável
se ela não morrer nos próximos dias
filho, não leia os livros que li
seja feliz
como essa gente que deixa a televisão ligada aos domingos
e nos dias úteis
engorda o câncer que cresce dentro de si
Guerra civil
Só se lembrarão de como terminou a guerra
não saberão dizer em que momento ela começou
Teria sido com as bombas caindo sobre a primeira cidade a trair a República?
— ou seria ela a última cidade a defender os ideais republicanos?
Não saberão dizer
Antes irromperam os grupos paramilitares nas ruas
Antes nos atingiram o arbítrio e as execuções
Antes sobreveio o esfacelamento das instituições democráticas
Antes se deram os arranjos e a pilhagem
Não saberão dizer
Depois que os poderes ruíram
sobraram os homens de farda para impor a ordem
e estes trouxeram a mordaça e o azorrague
seguiram-se fome, cólera-morbo, malária
Os filhos do solo batidos, emudecidos
Contudo, só se lembrarão de como terminou a guerra
« Tudo aconteceu muito rápido », dirão os mansos
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Postado originalmente no dia 16 de Junho de 2019 às 11:04