Ela, a Poesia de hoje
Ela, a Poesia de hoje,
Como que foge
De si mesma e se dói
De ter sido algum dia
Meramente poesia.
Erra,
Solitária e solene,
Nos caminhos da terra,
E vitupera o céu
E o que ele encerra:
- Ah! morra! Ah! esqueça Orfeu!
Canta a grilheta, a enxada
E a madrugada
Dos dias que hão-de-vir,
E como frutos, cair
Em nossas mãos...
Fala no imperativo,
E tem por vocativo
- Irmão! Irmãos!
Mas longe,
E perto, porque em nós,
Onde uma fonte canta
Uma toada clara,
Um fauno sabe e ri,
Na pedra gasta e escura,
Um fim de riso
De ironia rara...
Receita para fazer um herói
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.
O essencial é ter o vento
O essencial é ter o vento.
Compra-o; compra-o depressa,
A qualquer preço.
Dá por ele um princípio, uma ideia,
Uma dúzia ou mesmo dúzia e meia
Dos teus melhores amigos, mas compra-o.
Outros, menos sagazes
E mais convencionais,
Te dirão que o preciso, o urgente,
É ser o jogador mais influente
Dum trust de petróleo ou de carvão.
Eu não:
O essencial é ter o vento.
E agora que o Outono se insinua
No cadáver das folhas
Que atapeta a rua
E o grande vento afina a voz
Para requiem do Verão,
A baixa é certa.
Compra-o; mas compra-o todo,
De modo
Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos de um concorrente
Incompetente.
Nasci poeta abstruso
Nasci poeta abstruso.
Amo as palavras que estão
Entre o arcaico e o difuso
No cerne da indecisão.
Prefiro adrede e gomil.
Digo delíquo e fanal.
E só descrevo um funil
Em termos-vaso-de-graal.
Mas nesta minha importância,
Neste sol que me irradia,
Nem Deus preenche a distância
Que vai de mim à Poesia.
Café de cais
Café de cais,
Onde se juntam,
Anónimos de iguais,
Os ratos dos porões,
Babel de todos os calões,
Rio de fumo e de incontido cio,
Sexuado rio
Que busca, único mar,
Mulheres de pernoitar,
Unge-te a nojo, não Anfritite,
Fina ficção marinha,
Mas nauseabundo
E tutelar,
O vulto familiar
Da Virgem Vício
Nossa Senhora do Baixo Mundo.
Acordes gastos
Acordes gastos
De velhos cantos
Doutras deidades,
Riem, nefastos
Das novidades.
Zombam?... Quem sabe
Qual o sentido,
Oculto ou expresso,
Que tem a Esfinge?
Ai quantas vezes
O riso rido
É dor que finge
Ter-se sorrido;
Ou azedume
De ser excedido.
Talvez apenas
Serenidade;
Olhos que fitem,
Desnecessários,
A eternidade.
Nós é que, toscos
De ter sentido
Sua atentatória
Supremacia,
Nos esquecemos
Que os Deuses mortos
Não têm memória
Nem simpatia.
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Os poemas acima foram selecionados pelo editor desta revista e extraídos das diversas séries da obra Um voo cego a nada de Reinaldo Ferreira. Para a leitura integral de sua obra visite o site Alfarrabio.
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Postado originalmente no dia 21 de Abril de 2020 às 11:41