Jefferson Dias, autor dos livros de poesia Último festim (Multifoco, 2013), Silenciosa maneira (Medita, 2015, mediante ProAC) e Qualquer lugar (Editora Primata, 2020). Tem poemas, contos, traduções e resenhas publicados em periódicos e portais de literatura, tais como as revistas euOnça (Editora Medita), Opiniães (USP) e a portuguesa Caliban, os blogs Literatura & Fechadura, Germina, Ruído Manifesto, Ponto Virgulina, TriploV e Gazeta de Poesia Inédita. Ademais, trabalha na tradução do poema Briggflatts, de Basil Bunting.
AÇOUGUE DOS AFETOS
Tudo está como
Sempre esteve
As instituições estão funcionando normalmente:
O saque
O genocídio
A violação
O povo heroico o gado ruminante
Eia! Avante
Exalta o calibre do 38º presidente
Eleito democraticamente
A poder de bochicho ultraje detração
Com o arrimo da milícia voluntária para segurança nacional
Os opositores foram encarcerados esfaqueados esquartejados
O juiz ministro acima de todos
Afiança a legalidade
Ademais de blasonar a galhardia enuncia:
Tem convicção.
O presidente vai gravar com sangue e ratos nos pátrios anais
O arbítrio cego a inépcia a ruína.
Tudo está como
Sempre esteve
Sob ominoso céu tristonho e túrgido
O ódio
Açougueiro
Recrudesce
O continente inteiro em polvorosa
De sul a norte ardil e truculência
Depois da bruta usurpação
A estátua do conquistador
Vem ao chão estrepitosa o fogo arrasa
A capital como um bicho voraz e o povo alquebrado morre
Levanta-se danado abespinhado desempregado.
O presidente dos estados
Unidos interfere
Acima de deus cofia o topete e confia:
Não há revolução.
O exército obsta o enterro dos mortos o sol do novo mundo
Brilha como uma pá de cal.
As famílias remanescem com menos de um salário mínimo.
(UM MÊS SÓ DE DOMINGOS)
Um mês só de domingos
Sem dilúculos:
Um disparate cruza vermelho o céu
Como um límulo sem calcinha:
Minha mulher
Minha mulher nunca foi minha
Jefferson Dias é o dono das cinzas
O humano é o senhor do nada
(O pronome, um vício burocrático!)
O inacabado (a maiúscula viria a calhar!):
Uma escadaria leva aos olhos:
Há outra mulher
Devorando orelhas
Com seu esgar de Georgia Hale
E mais outra
Com as mãos de tarântula tórrida
Devassando cabeleiras –
O afogamento nos seus olhos de Monica Vitti –
Há o pai ainda vivo
Que se pergunta a si: a casa se sustentará
Com suas colunas
Como suturas
Frouxas?
Quando a mulher me via nu
Flor de angústia ereta
Sua boca de bicheira era um remédio
Secreto: os defuntos
Os defuntos os defuntos
(Os defuntos defenestrados desafiadoramente defrontando
O defecatório).
ÉREBO ERETO (PARA UMA DIDÁTICA DA MORTE DO POETA)
Enforcai-me,
Enforcai-me, pois o que vos ofereço
É uma boca, o berço da boca
Com a densa luz aberta no não –
Ofereço, com os dentes altos,
O não, palavra
Refulgindo qual o espelho morto dos céus.
Ofereço minhas mãos maiúsculas calcinadas.
Meus olhos de repolhos podres de cão estelar,
Minha cabeça de ouro maciço de vagabundo leproso.
Ofereço meu pescoço canoro de pássaro plúmbeo.
Não me importarei com a forca, nem com a inumação,
Nem com os vermes, nem com a escuridão.
Não é óbvio? Não é óbvio?
Não é
Óbvio?
Restar-vos-á o rosto arruinado no mármore,
Isto é, a imagem.
TUDO ESTÁ CONSUMADO
Eis o homem:
Eu sou o homem morto,
Flor pútrida e lânguida
Flutuando no fluido amniótico
Do buraco negro.
(Ou talvez não esteja morto,
E só deseje que a morte me roa silenciosamente,
Rapidamente durante o sono de hoje,
Tal e qual um soco eletricamente encastoado
Em um espelho.)
Eis o homem.
(Tornar-me o que sou?
De todo modo, um cadáver.)
Cadáver
Superexposto entre nebulosas,
Cabeça de estátua expelindo tinta pelos olhos –
Ouvi-me, não me confundais:
O que escrevi, escrevi.
(Ridículo e estocástico flato interestelar.)
PLANOS
Só
Por sobre o meu cadáver
Sem carne de novilha sem nobiliarquia
Sobre o carnê que soçobra maravilhoso
Na cerveja do sábado metafísico
Sobre a sobra sobre a mesa de centro
Na epifania de alcatrão da sala do apartamento reiterado –
O dia é o
Sobrepeso
Indivisível o dia
Inteiro é o próprio paço de poliestireno
Única coisa bóson de higgs banco de couro litoral menstrual
Bunda eletrônica pau hercúleo.
Só
Sob essa espessa camada de ódio
Sob essa escassa carcaça de monóxido
De carbono sob esse beijo de monóxido
De carbono sob esse sexo de
Garrafa PET.
Eu sou o fantasma
Não levo porrada da Polícia com P maiúsculo
Sempre sou campeão em tudo
Tantas vezes vil e másculo
Tantas vezes viril e justo –
Eu
Filho do estupro e da fúria do bukkake
Nas salinhas escuras dos shopping centers.
O dia é o monólito da desgraça a marmita podre
Afrontando o sol de flúor.
Você
Cabelo de boneca da Catherine Deneuve –
Quem é Catherine Deneuve?
A parede rachada da Catherine Deneuve.
A AK-47 da Anna Karina –
Quem é
Você?
Você atada a um poste
No meio da avenida do sangue do esqueleto
Da verdade do macaco mais profundo mais macaco –
Ai, o feijão hierático
O churrasco ansiolítico
No domingo asmático.
Nosso filho
Chiquérrimo no chiqueirinho
O verdadeiro varão
Tem dois nomes:
Aquele jogador de futebol com aquela atriz pentecostal.
Eu queria voltar
Como um rei cocainado
Eu dançava
Tão
Dentro
Da madrugada canibal –
O exército toma o estado mais setentrional do país,
Mas o sol
Alto no mês
Era um anelídeo de cimento.
Megalópole pura paranoia 19 de setembro
16 anos
Arquitetura da penúria: estreita escadaria
Como a última hora do dia,
Cômoro cômodo rachado no
Meio a mesa guilhotina deflorada –
Uma porta enganosamente inútil que, afinal,
É a hemorragia das paredes.
Pela janela cimentada
Ou pela outra
Entram as viaturas como no sonho de betume.
20 de setembro
Domingo: a locomotiva corta e emenda
Fotogramas ao acaso
O vento subterrâneo arrefece nossas garras; não há o medo,
Apenas a esperança de que os cadáveres não venham à tona –
De todo modo, as pessoas se azafamam
Como se um fantasma trivial as acossasse.
Dia 21, 17h, um dia me esquecerei de tudo,
Um dia um corpo frio será despojado de todas as memórias,
Só que agora
Puerilmente
Eu queria voltar:
Dia 19 de setembro etc.,
Um ministro tocou música na sede da ONU
E o secretário geral o acompanhou ao atabaque
Mas o manequim vigia o palácio de polietileno
Sob o viaduto
O sol aberto como uma romã
A milícia voluntária para a segurança nacional esfaqueia o
Capoeirista após a primeira missa
Na capitania da baía
Como um rei cocainado
Ou um caixão impregnado de nada
Atravessado na avenida
Eu deitava avaro e escuro
Só que agora
Eu queria explodir
Lenta gradual seguramente.
HELLO GOODBYE
Mas não me despeço à derradeira hora ou
Não o faço apenas a fim de furtar-me
Ao tropel dos cadáveres –
A alvorada se repete como um fuzilamento e só
Os meus olhos são a navalha misteriosamente
Esperando.
(A mosca pousa ensolarada no núcleo da mancha fresca:
O mênstruo puro no lençol puro.)
Billie Holiday cantava sempre a derradeira canção
Com os olhos marejados de sangue –
Assim deve portar-se o traficante do milagre
Ao cruzar uma avenida coalhada de fantasmas
Porque os lençóis se exasperam.
Se há a paisagem dolorida
Assim deve ser a despedida: uma navalha ensolarada
Porque só há um nome:
Finitude.
A enxúndia borbulha:
É o perfume da noite e é a própria noite devassando
Perenemente
As casas nos arrabaldes.
(Mas há uma avenida chamada Saudade
Arrasada pelo céu de cal e pelos fantasmas
Que regressam das repartições.)
O GRITO
Botaram tanto fogo botaram
Tanta fumaça
No dia do fogo tanto
A abóboda celeste derrete
A morte ordena suas motocicletas
Os tubos de escape trovejam.
Eu sou o moleque maravilhoso
Meu nome é tempo vento vendaval
Você me derruba como quem me nega
Meu nome é
Oxumarê
Meu corpo torto não é todo
Eu tenho um corpo e é só isso
E é por enquanto
Meu nome é
Omulu
Já não me humilho no sinal
Omulu é aquele deus de touca
Que engatilha e enfia
O cano dentro da sua boca –
Você me prende você me mata
E vem outro em meu lugar – botaram tanto fogo
E o fogo engole mãe pai prole.
Eu existo no meio da rua
Eu aprecio a demolição
Já comi lixo já vesti carcaça
Botaram tanta fumaça
Eu escalo essa pirambeira de piçarra
Eu faço pirraça eu
Perambulo sem futuro com graça
Você finge que não me viu
Quanto mais eu tenho tanto mais eu
Quero
Eu compro logo existo
Meu nome é cristo
Eu ando sob o esgoto
Um quilo de cocaína em Berlim vale 100 mil Euros
De San Juan Caballero
Eu trago 400 quilos
Na máquina helicóptero são 40 milhões de Euros
Eu compro
Políticos fiscais agentes da ordem –
Entre o silêncio e a palavra:
O grito.
Entre e o grito e o outro:
O abismo o fogo.
No dia do fogo tanto
Tanto faz
O fogo tanto
Engole o moleque o policial a princesa a cegonha
O bandido o doutor o muro o barracão pendurado no morro a mansão o champanhe o sócio –
A morte ordena suas motosserras.
Postado originalmente no dia 18 de Agosto de 2020 às 10:50