Deanna Ribeiro é de Olinda e graduada em Letras pela UFPE. Participou das antologias poéticas: em meio físico, TOC 140- Ano II (Carpe Diem Edições e Produções - 2011) e Quem dera o sangue fosse só o da menstruação (Editora Urutau - 2019); e em meio digital, Edição especial da Folha Poética (Natal/ RN) - Mulherio das Letras (2019); publicou o livro autoral As Mulheres que não cabem em mim (editora Multifoco - 2012); tem uns textos e poemas espalhados pela web e divulga suas artes através do instagram @deanna_ribeiro
Olhar-trapezista contra o sol
sabe-o ali adiante porque
queima a superfície
sente o fogo incendiar a retina
mas encandeado não vê
assim também são as palavras
um não sabe se a si se alcança
quando com elas
rumo ao lume eleva escadas
subida íngreme
que esgota
a panorâmica farta
nunca o suficiente
porque não aponta exato
mas semelhante
o sinônimo imperfeito
a essência desencontrada
atada a língua à possibilidade
àquele resta acolher o léxico
e jogar com as variáveis
no tabuleiro da semântica
um tanto cínico
e quase cego de luminância
*
A maçã não se olha no espelho
nem sabe que pende do galho
não crê em deus nem teme a morte
e nunca ouviu falar de pecado
o símbolo de sua carne doce
que é mais água do que carne
na verdade
a maçã não sabe
e por não saber-se
é mais do que se soubera que fosse
nós é que somos seres
de uma determinada espécie
e damos a ela seu nome
separamos em partes
tudo quanto a mente alcance
nós seres pensantes
nomeamos categoricamente
a maçã o espelho e a ordem
*
o corpo imagina ocultar suas dores
quando coberto por ser vaidoso
- nem tanto pudico
sem saber que nudez não revela mais
do que o faz um corpo vestido
o mesmo vinco cintilante estampado na testa
resvala do pescoço pelas costas
um braço de mar pressuposto sob as vestes
correndo vazante em caminhos pouco rasos
até desaguar aberto e molhado
na imensidão
indissimulável da margem dos olhos
*
Do que é feito o silêncio
de algum fogo morto da dor anestesiada
das palavras que não dissemos
(da boca à sombra de outra boca
que de tão próximas mas ainda distintas
não necessitam de narrativa)
ou do que pressupõe existência
quantos sons serão precisos para ouvi-lo
pássaros britadeira pingo d’água
o pneu rolando no asfalto
estalos de dedos
o fonema sincopado
um som se compõe de silêncios vários
escondidos debaixo do óbvio
mas não se propaga no vácuo
(ou seria o próprio ar não vibrado
capaz de guardar apenas para si
o ruído que se faria ouvir caso contrário)
som e silêncio
gêmeos dizigóticos estendidos na corda
ensolaram e tremem na cadência do vento
*
O DIA E A LÂMINA
ponta afiada na superfície plástica
do cotidiano estica o tecido
até furá-lo sobre a mancha
do hábito do pulo pra fora do sono
do rito de passagem de casa pra rua
banho roupa suco dentes
duas voltas na fechadura
(ou será que foi só uma)
e o sol na cara
as horas que não se sentem
ausência demente do corpo
do furo não jorra sangue
pois o que toca não é carne
brota sim um colorido disforme
nascido de algo que não tem nome
catarse é o corte sem ruído
rasgando a pele das horas
precisamente
como se ela de vidro fosse
em tempo as horas são de elástico
tanto mais palatáveis
quanto a presença consciente
uma camada e outra por debaixo da rotina
feita de garrafa pet
e por isso mesmo
reconstituída a cada novo talho
o furo o corte impõem outro ritmo
descoberta de um estrato de vida
onde o agora se faz sentido
*
Todo dia à mesma hora
quando o sol levanta um pouco
também me levanto rara
quase sombra na parede
sobra da madrugada
puxo uma mecha de cabelo
meio próxima ao pescoço
meço com uma fita métrica
e constato o crescimento
fios longos trouxe o tempo
já agarram pelas costas
feito planta trepadeira
atracada pelos muros
folhas verdes e orvalhadas
tocam os seios levemente
fazem cócegas no bico
e se atiram para fora
qual criança no balanço
contra a luz o que se vê é a
silhueta de um corpo
envolvido em grama farta
que começa na cabeça
avança por todo o tronco
e tem fim num pé de vento
quando açoita a memória
*
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Postado originalmente no dia 12 de Julho de 2020 às 10:19