Do exercício de não ser poeta
Por André Merez
“Saio de meu poema como quem lava as mãos”
João Cabral de Melo Neto em Psicologia da composição
Quando cismo e penso sobre o que é ser poeta sinto como se perdesse a poesia. Há talvez uma lacuna imprevista entre o “ser poeta” e o exercício mesmo de fazer poesia. Como surge o poema, onde, quando e por que ele se impõe como necessidade, realmente? O escritor húngaro Átila József afirmou em um de seus textos que “Quando se faz poesia, o certo seria não fazê-la” e não posso ignorar essa afirmação desde que a li pela primeira vez. Talvez haja realmente um sentido intrínseco nesse ‘ser poeta’ que nos afaste da poesia.
Ao investigar a natureza dessa relação em meus pares, sejam aqueles que só conheci pelos livros ou por estes que dividem comigo os saraus, os lançamentos e as postagens nas redes sociais, verifico que muitos, para não me arriscar a dizer todos eles, parecem incapazes de aceitar essa auto-definição. Alguém torna-se poeta? É realmente possível ensinar o ‘ofício’ da poesia para alguém? E ainda: é possível se autointitular como poeta? Não pretendo com este texto encontrar respostas para essas perguntas, mas, antes, fazer uma provocação que se aplique primeiro a mim mesmo e que, talvez, possa se estender para quem tenha como prática diária e constante a construção de versos.
Para a poeta portuguesa Florbela Espanca, “Ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens” e então mais uma vez me sinto afastado da poesia segundo essa definição. De outra feita, Fernando pessoa afirma “Não tenho ambições nem desejos./ ser poeta não é uma ambição minha./ É a minha maneira de estar sozinho.” e novamente vou cada vez mais me distanciando desse “ser poeta” e do que entendo como a construção de versos. Vale ainda lembrar que um dia esbarrei com Ariano Suassuna que disse com aquela voz rouca “Ser poeta é muito bom porque eu não tenho nenhuma obrigação de veracidade. Eu posso mentir à vontade, cientista é que não pode.” e agora já estou bem próximo de desistir de buscar fora de mim mesmo algo que me ajude a entender essas coisas.
Não tenho nenhuma dúvida de que meu pai sempre foi um poeta, mesmo não tendo escrito um único verso em seus, até agora, oitenta e um anos de vida e de poesia. E com isso aceito o risco de ferir os ânimos daqueles que compreendem o fazer poético como “o trabalho com a palavra”. E sim, também concordo com essa definição, mas resisto bastante em aceitá-la como a única. Isso de ser poeta parece ser algo um pouco mais amplo. Parece ser algo que se impõe violentamente e não uma escolha, simplesmente. Alguma coisa entre um modo peculiar de sentir as coisas do mundo e uma necessidade incontrolável de transformá-las em versos.
Ainda assim sigo sem saber e nenhum pouco me importa alcançar esta ou aquela definição do que é ser poeta. Importa-me antes a poesia. E se isso de ser poeta resultar em me afastar da poesia, prefiro não sê-lo. E então fecho com a poesia, que é esse não ser coisa alguma sendo tudo ao mesmo tempo. Parodiando József arriscaria dizer que “quando se é poeta, o certo seria não sê-lo”. Quem sabe assim seja possível seguir simplesmente escrevendo a poesia nossa de cada dia?
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Postado originalmente no dia 20 de Agosto de 2020 às 19:53